domingo, 9 de outubro de 2011

O livro: PEDRADA NO ESPELHO pagina 66 a 68

Renascer, Reconstruir e reconquistar



Volto a ser pai. É um 2003 emocionante. Admiro o pai que entra na maternidade e dá a mão na hora de parir. Eu não. O momento é tão feminino que não tenho a força nem a coragem necessárias para o acompanhar. Se sentisse ou soubesse que haveria algum risco detetado, aí não hesitaria nem um segundo em estar bem junto á progenitora. Caso contrário, fico inativo. Para mim, todos os recém-nascidos são feios mas belos pelo que representam. Agora as coisas complicavam-se para mim. Sentia a angústia de ser um pai presente com a Ariana e não o ter sido com a Luana, a minha filha mais velha.


A historia dum pai que tinha duas filhas, dois amores mas com tratamentos desequilibrados. Não sentia que tivesse sido um pai com motivos de orgulho. Temia que o afastamento da Luana e da mãe fosse maior e com revolta, porque até á data, tinha sido um pai ausente, polémico e agora tinha mais um motivo para piorar o meu comportamento. Com tanto receio, ainda me afastei mais. Sonhava todos os dias ver as minhas filhas juntas, felizes, mesmo que elas não me prestassem atenção. Queria que dessem muito mais amor uma á outra do que eu daria às duas. Embora não haja cálculo para o amor, na minha imaginação, queria ter uma fórmula matemática para tal.


Entrei num caminho sem saída. Passei a viver entre o carinho de duas filhas e a angústia de não conseguir ser justo.


Sabia o quão é importante ter um pai, principalmente porque não o tive. Eu tive a força necessária para viver sem ele. Preenchi sempre esse vácuo com imaginação. Se não o tinha, procurava compreender nos homens adultos como ser e como me comportar para poder sobreviver sem pai. Nunca disse que o meu pai era melhor que o teu porque não tinha pai para competir. Então competia comigo mesmo e decidi ser homem muito cedo. Procurei saber o que era ser um homem de verdade. Talvez por esse fato, tive que compreender cedo o mundo que me rodeava e levantei-me por mim, lutei por mim, sonhei com as minhas conquistas e ganhei o respeito dos outros. Nem sempre consegui vencer esse fantasma. Lá no moinho, tinha a minha avó, o meu pilar. Mas ela acusava o meu avô de, quando eu era muito pequeno, lhe dizer: - “Põe esse miúdo fora de casa! Manda-o para a mãe!”. Voltava a acusá-lo de ser mau, de não ter coração e por ter dito aquilo só porque eu estava doente e não o deixava dormir. Efetivamente, ele tinha um mau génio, conseguia ser mau e frio quando queria. Era radicalmente insensível. A “vózinha” nem percebia o quanto me magoava só para me defender. Ela não percebia que eu queria sentir-me acarinhado e amado pelo meu avô. Ele era mau mas eu até sentia orgulho nisso, amava-o incondicionalmente.


Fiquei extremamente satisfeito quando ela contou que, uma noite, quando uma das filhas chorava de dores, ele gritou e ameaçou que lhe batia, e ela, numa estranha compreensão de bebé de 2 anos, se calou e sofreu em silêncio. Esta história consolou-me porque justificava que ele gostava e tratava-me como um filho.


Um dia, num fim de tarde de verão, estava a brincar e encontrei uns jornais. Os jornais serviam para o meu avô se limpar quando fazia as suas necessidades fisiológicas.


Marko: - “Avô, olhe aqui tantos jornais. Porque não os lê?”


O velhote sorriu e respondeu:


Avô: - “Antigamente lia, lá em Queluz mas agora já mal consigo ver.”


Achei a desculpa despropositada porque o sorriso matreiro indicava que talvez não tivesse ninguém com quem partilhar essa leitura. Ele continuava sentado, num banco de cortiça, debruçado sobre a velha mesa de madeira. A mesa estava coberta com uma toalha de plástico florido e golpeada pelas facadas ao cortar o pão. Na frente tinha um meio copo de vinho tinto vindo do garrafão que estava sempre no chão, ao seu lado direito e sempre pronto a pegar.


Dirigi-me para perto dele, estendi o jornal e obriguei-o a ler. Ensinei-lhe sílaba a sílaba e recordei-o das lições da primeira classe. Ele era considerado como um homem instruído. Para além de saber assinar, sabia ler e tinha a quarta classe, o que era raro no meio rural. Esse era um dos fatores pelo qual ele tinha sido tão pretendido na juventude, orgulhava-se a minha avò.


Lemos e rimo-nos toda a tarde. Eu obrigava-o a ler e compreender todo o texto e ele retribuía com dedicação e risos. Lemos o jornal inteiro.


Ao fim da tarde, já o sol se ia despedindo, regressou a minha avó Maria José. Lá vinha ela sempre a lamentar-se do cansaço e da velhice. Vinha sempre para junto de mim, como se regressasse para me proteger.


Avò: - “Então, o que é que andaram para aí a fazer?”


Marko: - “Nós estivemos a ler o jornal.”


A minha avó soltou uma gargalhada e com algum desprezo respondeu:


Avò: - “O teu avô?! A ler?! Bem devia porque ele fez a quarta classe mas agora virou burro e já não sabe ler nada.”


Enchi-me de orgulho, fui buscar o jornal e voltei a colocá-lo no mesmo lugar. Pois, porque aquele lugar era sagrado para o meu velhote, assim como a posição do garrafão do vinho. Ele riu-se e respondeu com o típico tom resmungão:


Avô: - “Não ligues. Ela é que pensa que eu não sei ler.”


Mesmo resmungando, ela orgulhava-se de ele ter a quarta classe e ele nunca a acusou de ser analfabeta nem se aproveitou de tal situação para a atacar. Viviam bem orgulhosos um do outro.


Foi então que lhe lemos parte do jornal, com alguma dificuldade devido aos candeeiros a petróleo. Ela ficou atenta, a sorrir e a ver o seu velho parceiro a ler qualquer coisa. Senti o orgulho nos olhos da Maria José. As rugas do campo vincavam a expressão do olhar brilhante carregado de felicidade.

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