O livro II: Pedaço de um espelho partido - O caminho -pag1 e 2

O caminho

Situado bem longe da vila de Penamacor, o Pego, era uma quinta recheada de segredo e magias. À volta, não se via habitats de seres racionais. Apenas lá bem longe, deslumbrada entre as árvores que abraçavam a ribeira, a casa da Marí Bêbeda. Ela era viciada em álcool e o Joaquim, marido preocupado mas acostumado à situação deprimente, já nem se preocupava com a imagem social. Apenas se preocupava em esconder-lhe o garrafão do vinho que fazia parte do pão-nosso de cada camponês. Mas a Marí Bêbeda contornava a situação e despejava para dentro do seu estômago viciado, os restos de álcool etílico com água e açúcar.

Eu achava-a estranha…

Todas as manhãs eram diferentes, nada se repetia, porque nada se repete na mãe natureza e tudo funciona em círculo.

Eu, menino de sete anos, decorava todos os pormenores imóveis ao meu alcance. Vivia lá, naquele moinho que fazia parede com a ribeira de Nssa Senhora do Incenso.

Os invernos eram rigorosos e eu nunca percebia o alcance das orações da minha avó. Mas eram bem evidentes…

Quando havia cheias, resultantes das tempestades pintadas com violentos relâmpagos que ecoavam os estrondosos trovões, a ribeira ultrapassava todos os limites. A sua água transbordava e varria tudo.

Nestes momentos, ela escrevia, histórias de quilómetros da sua passagem.

O moinho onde eu permanecia com os meus avós e os animais, era construída com uma mistura de pedras leves e pesadas, bem calculadas. Mas os meus avós duvidavam que elas resistissem à força da ribeira. Por isso rezava…

Eu assustava-me mais com o pavor da velhota do que com o real perigo!

Todas as manhãs cumpria alguns rituais.

Com sete anos, tinha de ir à escola como todos os meninos da minha idade. Às sete da manhã, pontualmente, a minha avó levantava-se e acordava-me. Acordava mesmo antes daquele despertador redondo, orelhudo, de metal azul claro e que era lhe dado corda e acertado diariamente pela telefonia do avô Zé.

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Não era difícil porque as noites eram passadas à lareira, sem televisão. Havia algo de mágico todas as noites. Eu e o meu avô, sentávamo-nos bem juntinhos a ouvir a rádio-novela. A história falava de um menino que foi convencido a largar a sua vida pacata e honesta para se tornar num carteirista profissional. Aproveitava todos os intervalos para conversar sobre a história, pois era impossível falar durante o episódio radiofónico, evitando correr o risco de não ouvirmos o que os “atores” representavam oralmente.

- “Avô. Será que o menino vai na história dele?!”

Ele respondia-me quase sem voz:

- “Pchiuuu! Espera, ouve para sabermos o que ele lhe vai fazer!”

Implacavelmente, deitávamo-nos com as galinhas.

O meu despertador biológico já estava treinado e antecipei-me à minha avó.
Como forma de a compensar por tudo o que ela se sacrificava, decidi brindá-la todas as manhãs com a lareira acesa. Às seis e pouco da manhã, a temperatura rondava os três graus negativos. Sair da cama era uma tarefa dolorosa, até porque, a casa tinha uma sala, que mais não era que, um corredor largo e comprido, onde tudo se passava.
A porta, de ripas largas de madeira, tinha mais ranhuras que um casco de um barco rasgado pelas rochas… do lado oposto, aquela janela que raramente se abria e que respirava ar contínuo, como uma turbina vinda do exterior. O teto era o telhado com algumas telhas desviadas. Umas deixavam entrar água, outras luz, outras tudo. Mas todas deixavam entrar o ar gélido do exterior.
Então o pequeno menino do moinho colocava os paus grossos da madeira carregada pela avó Maria José na lareira, ainda com alguns dedos de altura de cinzas acumuladas. Colocava-los empilhados nas pinhas dos pinheiros bravos do pinhal em frente. Com aquele fósforo gigante, surgia o momento mágico e calorento.
A minha avó levantava-se, sorria e agradecia sempre este papel invertido. Depois, ela colocava aquela panela preta de ferro, com três pernas, pendurada na corrente presa à trave de madeira que sustentava as telhas.
Aquecia a água que serviria para lavar as minhas mãos e cara. O lavatório era uma bacia colocada numa armação em ferro.
Era um momento deleitoso. Eu mergulhava as minhas mãos naquela água bem quente, aproveitava o balanço para lavar e aquecer a cara, com aquele sabão azul e branco que deixava a pele a cheirar a roupa lavada.
Chegava a hora de fazer o caminho para a escola.
Era um caminho de fantasias, histórias e perigos. Era uma questão de sobrevivência. Ou lutava pela vida ou a morte esperava-me. Era uma realidade nua e crua.

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